Nos últimos meses nós assistimos a
um embate sobre as compras parceladas “sem juros”. De um lado o presidente do
Banco Central, Roberto Campos Neto, defendendo uma limitação da modalidade, visivelmente
preocupado com o endividamento da população e a consequente rolagem das dívidas
no cartão de crédito. E de outro lado as entidades representativas do comércio
e bancos, lutando pela continuidade dos parcelamentos, pretensamente defendendo
o direito do consumidor adquirir seus bens em suaves prestações.
A polêmica não é pequena.
Dependendo da fonte consultada, estima-se que entre 70% a 75% das vendas do
varejo sejam parceladas. A grande maioria parcelada “sem juros”.
Mas por que estou colocando o
“sem juros” entre aspas?
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Existe parcelamento sem juros?
Vamos analisar dois anúncios do
MercadoLivre, o paraíso do parcelado “sem juros”.
Veja no anúncio acima que existe
um preço original de R$ 199,99 e um preço com desconto de 15%: R$ 169,99.
Existe a opção de compra em 12x
de R$ 16,52. Calculando aqui na minha HP-12C, a taxa de juros praticada neste
financiamento é de 2,45% ao mês.
Procurei outros anúncios do mesmo
produto e olha o que eu encontrei:
Nesse anúncio o mesmo produto
está anunciado à vista por R$ 199,90 e pode ser comprado em 6x “sem juros” de
R$ 33,32.
Repare aqui a artimanha:
Os anúncios parcelados “sem juros”, têm o seu preço à vista já com os juros embutidos.
Comparando o preço final nos dois
parcelamentos:
- Primeiro anúncio (parcelado com juros): 12 x R$
16,52 = R$ 198,24
- Segundo anúncio (parcelado “sem juros”): 6 x R$
33,32 = R$ 199,92
Se analisar direitinho, o
primeiro anúncio é até mais interessante, por ter a possibilidade de compra à
vista por R$ 169,99 e o parcelamento mais longo, em 12 vezes.
No mundo real não existe parcelamento sem juros!
Que taxa de juros o mercado está praticando hoje?
Pesquisando vários outros
anúncios no Mercado Livre e fazendo as contas, podemos estimar que o mercado
está praticando uma taxa de juros em torno de 2,4% ao mês no financiamento de
produtos e serviços.
Não existe nenhum motivo para
acreditar que os parcelamentos “sem juros” não estejam com esta taxa embutida
nos seus respectivos preços à vista.
Como se defender sendo consumidor?
Peça
descontos à vista!
Mas que desconto pedir? Quando
vale a pena comprar à vista?
Vou fazer umas simulações aqui,
considerando um produto fictício que custe R$ 100,00 à vista, e que tenha taxa
de juros de 2,4% ao mês nos financiamentos.
Vamos usar a lógica do vendedor
para um parcelamento em 6x “sem juros”:
Preço à vista: R$ 100,00
Parcelamento considerando taxa de
2,4% ao mês: 6 x R$ 18,09 = R$ 108,54
Comandos na
HP-12C:
Vejamos como ficaria o anúncio:
R$ 108,54 à
vista ou 6 x R$ 18,09 sem juros.
Percebeu como e á pegadinha? O
preço “a vista” já tem os juros embutidos.
Mas quanto pedir de desconto à
vista?
Usando a função Δ% da HP-12C,
concluímos que um desconto de 7,87% aplicado em R$ 108,54 nos daria um preço à
vista de R$ 100,00.
Comandos na
HP-12C:
Resultado: variação = -7,87%
Seguindo este mesmo raciocínio,
eu deixo de presente aqui para você uma tabelinha indicando que desconto pedir
em cada parcelamento “sem juros”. Vou arredondar os números para facilitar:
Nota: Valores válidos para as condições vigentes na data de publicação do
artigo.
Parcelamento “sem juros” é uma estratégia de vendas válida?
Eu diria que sim. Tem aí um
componente de “me engana que eu gosto...”, mas é inegável o apelo de venda do
parcelamento “sem juros”. Não é à toa que mercado e bancos estão defendendo a
continuidade desta modalidade com unhas e dentes.
Se as famílias estão chegando num
patamar perigoso de endividamento, isso é basicamente uma questão de análise de
risco de crédito. Se você conseguiu passar um parcelamento no cartão, é porque
a operadora do cartão avaliou que você conseguirá pagar as parcelas.
Como uma consideração final, eu
acredito que a liberdade econômica é um pilar fundamental do desenvolvimento e até
da nossa vida em sociedade de forma mais ampla, mas confesso que me incomoda
ler a expressão “sem juros”, quando sabemos que tem juros embutidos num
parcelamento.
Estando do lado do vendedor ou do comprador, para sobreviver nesses tempos é vital ter um conhecimento básico de matemática financeira. Se aprofundar neste tema pode ser um dos seus objetivos de estudo para 2024.